terça-feira, 6 de outubro de 2009

Cultura Surda?


Estas linhas são minhas reflexões (provisórias, falhas, porém sinceras) acerca do conceito de etnicidade proposto por Ross, citado no texto “Bilinguismo: línguas em contato”. Diz ele que os pontos definidores de etnicidade são: a língua, modo de vestir, e religião. Critérios estes muito práticos e pragmáticos, realmente quando pensamos nas diferentes culturas ao redor do mundo nos vêm exatamente esses pontos, a minha questão no entanto é: Em um mundo em processo de globalização, em certos aspectos homgeneizantes, até que ponto, roupas poderão servir como critério distintivo infalível, falando-se em etnias? Nos vestimos tão diferentemente assim dos americanos, franceses, portugueses, gregos? Essa resposta não posso dá-la com certeza, mas acredito que não. Nossas religiões poderão servir também como critério? Não serão todos países citados seguidores (com boa participação) dá fé cristã, católica ou protestante? E se não o forem, no Brasil temos uma diversidade religiosa incrível, e ainda sim somos todos brasileiros. Por último, e muito mais problemático a língua, esse é com certeza um ponto central nas discussões sobre etnia. Apenas para continuarmos o raciocínio seguido até agora, imaginemos que sob certo conceito de língua, Portugal e Brasil falam a mesma língua. Dessa maneira teríamos as seguintes coisas em comum com os portugueses:

1- Vestimenta (ao menos em certas situações sociais comuns às duas culturas, como escritório por exemplo)

2- Religião (Portugal e Brasil contam com boa participação da religião católica em seus territórios)

3- Língua, a língua portuguesa (Lembrando-se que língua é um conceito muito amplo, não tornando incorreto dizer também que português europeu e português brasileiros são línguas diferentes, depende do enfoque ora utilizado)

Seríamos então, nós e os portugueses a mesma etnia? Esta é uma pergunta retórica e a resposta é obviamente não. Claro está também que eu procedi a uma utilização bastante direcionada, conveniente para meus objetivos, dos conceitos apresentados. O que me incomoda é: está a minha leitura muito paranóica, encontrando “pelo em ovo de galinha” como muito bem resume o ditado popular, ou de fato pode-se, levando às últimas consequências o conceito de etnicidade proposto pelo autor, chegar-se ao raciocínio por mim apresentado? Em caso de resposta afirmativa à última pergunta o conceito por ele apresentado é estreito, não se prestando a uma generalização ótima dos fatos, carecendo por isso de reforço.

Digo reforço, por considerar que os critérios utilizados pelo autor são na verdade muito bons, mas vivemos numa realidade em processo de mudança, de apagamento, talvez, de algumas dessas diferenças, e por acreditar que existem outros fatores que venham a completar o sentido de etnicidade. Aos quais passo a seguir.

Para mim, etnicidade é um sentimento de pertencimento a algum grupo social, amplo, porém definido. Dentro desse grupo o sujeito de certa forma se “vê” e se reconhece no outro, e cria assim um “nós” esse “nós” só pode existir, no entanto, em diferenciação a um “eles”. Esse reconhecimento no outro, e a criação de um nós, pressupõe uma história e uma vivência em comum, as quais só se darão na interação social. Para seres interagirem (hoje em dia, não necessariamente) precisam dividir um espaço físico (o que figuraria como um critério geográfico ao falarmos de etnicidade). Para interagirem, além de estarem no mesmo espaço físico, terão de utilizar-se de uma língua, e é por isso que este é um conceito essencial na presente discussão. A língua cumpre a importante função de servir como instrumento de interação entre os seres, proporcionando a criação de laços afetivos, a vivência de experiências em comum, a transmissão de valores morais e tecnologias, isso tudo são coisas que a língua reflete, mas a língua não apenas diz a realidade, como também a tece. Então a lingua não só passa adiante uma vivência, história em comum, ela é, também, em mesma*, uma história e vivência em comum. Por todo dito, considero que a língua desempenha papel crucial não só no sentimento de pertencimento a algum grupo social, como na própria constituição desse grupo social. Relacionarei no próximo parágrafo, esta discução com a situação dos surdos brasileiros.

Pelo acima discutido pareceria dúbia a minha posição em relação à questão de se os surdos compõem ou não uma etnia, ou uma cultura a parte, pois se para mim etnia é um sentimento de pertencimento, e eu acredito que os surdos se sintam brasileiros, e se língua tem um papel central nesse sentimento, e os surdos têm uma outra língua, teriamos um conflito no conceito. A minha tese no entanto é: os surdos vivem numa situação cultural ímpar. Segundo Gladis Dalcin, em seu “Um estranho no ninho: um estudo psicanálitico sobre a constiuiçã da subjetividade do sujeito surdo” constante em “Estudos Surdos Volume I” organizado por Ronice Muler Quadros, o surdo sente-se um estrangeiro dentro de sua familia, isso ocorre devido a barreira da linguagem, o que faz com que o surdo não possua o mesmo tipo de identificação familiar que possui um ouvinte, e que essa identificação se dará, no caso dos surdos, no seio da comunidade surda. Na página 188/9, pode-se ler:

A lei que apresentava uma vigência significante era aquela organizada pela comunidade

surda, colocando a família de origem num lugar secundário, já que eles se definiam como estrangeiros em relação ao núcleo familiar. As identificações centravam-se em torno da comunidade surda, na qual o reconhecimento de si passava pelo sinal próprio (recebido da comunidade surda) e não pelo nome próprio (recebido da família).

Diante dessa situação, a pesquisa buscou situar e investigar como o surdo filho de pais ouvintes internaliza a cultura familiare de que maneira essa internalização colabora para a formação de sua subjetividade. Para a análise, foram levados em consideração a diferença de língua e de cultura, o sentimento de “estrangeiro” que os surdos afirmaram sentir em relação a sua família de origem e, de maneira inversa, o seu sentimento de “familiaridade” quando

encontraram a comunidade surda, que denominaram de sua “família”. Delineou-se, também, a necessidade de se pesquisar de que maneira esse sentimento de “estrangeiridade” interfere na

identificação do surdo com sua família de origem e que efeitos tem na constituição de sua subjetividade.”

Mesmo com o dito no parágrafo anterior, mesmo com esse sentimento de estrangeiridade manifesto pelo surdo, acredito que se houvesse um congresso mundial de surdos, e fossem para lá um grupo de surdos brasileiros, estes se identificariam a mesmos como um grupo, um “nós” em diferenciação/oposição a outros grupos, a “eles” e essa oposição entre “nós” e “eles” não se daria com base em ser surdo, ou não. Se lhes fossem perguntado: “Vocês são o que?”. Acredito que responderiam: “Somos brasileiros”. E é exatamente essa a situação ímpar, contraditória e complexa dessa minoria linguística, ao mesmo tempo em que eles se veem, e não podemos tirar sua razão de assim se verem, como possuidores de uma cultura diferente, como estrangeiros dentro da própria família, eles são brasileiros. Estão por ai, nos ônibus, mêtros, shoppings, escolas, estamos juntos torcendo pela mesma seleção, gostamos de arroz e feijão, mcdonnalds e cachorro quente da esquina, moramos no mesmo país, somos formados por africanos, portugueses, índios, e uns italianos aqui, uns japoneses acolá, uns alemães lá em baixo. Um bebê surdo ganhará roupas azuis, e uma bola, uma bebe surda roupas rosas e uma boneca. Como se vê tal questão é de fato complexa, e acaba criando um ciclo vicioso. Como se cria e transmite cultura se não for pela língua? Se surdo e ouvinte não dividem um código, como podem então partilhar uma cultura? Se a barreira da diferença linguistica é obstaculo para esse compartilhamento, não é, necessariamente, um obstáculo intransponível, pode haver troca graças à capacidade da linguagem.

Parece-me impossível prosseguir o debate do presente tema, resumido em “Os surdos têm um cultura própria? Existe uma cultura surda?” sem discutirmos “ o que é cultura?”. Sem a pretensão de reduzir cultura ao exposto por mim e sabendo das minhas limitações frente a assunto tão complexo, acredito que a cultura pode ser entendida como o modo pelo qual nos relacionamos com a realidade e nessa relação a (re)criamos, (re)significamos e (re)estrturamos e do lado inverso somos (re)criados (re)significados e (re)estruturados. Isso envolve a realidade social e a realidade fisíca, havendo uma interação intensa entre esses dois elementos. O modo como a realidade fisíca nos afeta repercute no modo como nos relacionamos com nossos pares, e o modo como nos relacionamos com nossos pares repercute no modo como a realidade física nos afeta, e consequentemente como lidaremos com ela, não havendo espaço aqui para determinismos no sentido de que caracteristica “A” da realidade física resultará em característica “A” da realidade social. O que quero dizer com esta discussão é que vivemos em um mundo bio-social, onde o biológico (sentido amplo) interfere no social, e o social interfere no modo como nos relacionamos com o biológico, com o físico, dialogicamente. Tendo essa dimensão do conceito cultura como pano de fundo não se pode dizer que os surdos mantêm uma relação com a realidade física diversa da nossa, ouvintes? E que graças a essa relação diferente com a realidade fisica eles tenham uma percepção da realidade social diferente da nossa? Por conta dessa especificidade física, não podem os surdos estruturar e (re)criar a realidade de um modo diverso do nosso, justificando-se então a afirmativa de que os surdos possuem (também) uma cultura diferente da nossa, ouvinte? Com isso não quero dizer que os surdos compõem uma sociedade à parte, conforme já discutido anteriormente. Portanto ao falarmos de cultura surda, não devemos colocá-los todos sob o mesmo rótulo, estaremos falando da cultura surdo-brasileira, surdo-francesa, surdo-norteamericana, ou, cultura dos surdos brasileiros, dos surdos franceses, dos surdos norteamericanos etc....

Partindo da hipótese de que existe uma cultura surda, a próxima pergunta seria: O que é então a cultura surda de fato? Para começar a responder esta pergunta comecei a ler o livro “As imagens do outro sobre a cultura surda” da autora surda (e brasileira, diga-se de passagem) Karin Strobel, lançado pela editora UFSC, em 2008, procurando indícios concretos do que seria essa “cultura surda”. A seguir passo a relatar o que encontrei nesta leitura.

página 17 a autora diz: “Conforme afirma Hall (1997), nas teorias dos Estudos Culturais, a cultura que temos determina uma forma de ver, de interpelar, de ser, de explicar e de compreender o mudno.” Em seguida, na página 24, chegamos ao ponto em :

“Cultura surda é o jeito de o sujeito surdo entender o mundo e de e modificá-lo a fim de torná-lo acessível e habitável ajustando-os com suas percepções visuais, que contribuem para a definição das identidades surdas r das almas das comunidades surdas. Isto significa que abrange a língua, as idéias, as crenças, os costumes os hábitos de povo surdo.”.

Mais a frente, na página seguinte lemos:

“ O essencial é entendermos que a cultura surda é como algo que penetra na pele do povo surdo que participa das comunidades surdas, que compartilha algo que tem em comum, seu conjunto de normas, valores e de comportamentos.” .

Temos, até então, para a autora que: “cultura surda é o jeito surdo de ser e compreender o mundo.” A próxima pergunta lógica seria: "o que é o jeito surdo de ser e compreender o mundo?” "No que eles diferem de mim, ouvinte, para que se possa falar em cultura surda?" A autora nos mostra o que chama de “artefatos culturais do povo surdo” que seriam as “peculiaridades da cultura surda (página 37). Elenco a seguir alguns desses artefatos.

O primeiro artefato cultural analisado pela autora é a “experiência visual”, diz ela na página 38:

“O primeiro artefato da cultura surda é a experiência visual em que os sujeitos surdos percebem o mundo de maneira diferente, a qual provoca as reflexões de suas subjetividades: De onde viemos? O que somos? E para onde queremos ir? Qual é a nossa identidade?” .

Na próxima página, lemos a citação de Perlin e Miranda (2003, p.218):

“Experiência visual significa a utilização da visão, em (substituição total à audição), como meio de comunicação. Desta experiência visual surge a cultura surda representada pela língua de sinais, pelo modo diferente de ser, de se expressar, de conhecer o mundo, de entrar nas artes, no conheciemento científico e acadêmico.”

A autora nos relata, na página 38, de uma experiência particular bastante ilustrativa: Por ocasião de seu aniversário, seu namorado havia lhe preparado uma surpresa: iria levá-la a um restaurante “bem romântico” vejamos o que ela nos diz :

“[...] Era um ambiente escuro com velas e flores no meio da mesa, fiquei meio constrangida porque não conseguia acompanhar a leitura labial do que ele me falava por causa da falta de iluminação, pela fumaça de vela que desfocava a imagem do rosto dele, que era negro; e para piorar, havia um homem no canto do restaurante tocando musica* que, sem poder escutar, me irritava e me fazia perder a concentração por causa dos movimentos de vai-e-vem com seu violino. O meu namorado percebeu o equivoco* e resolvemos ir a uma pizzaria.”.

Vemos no caso relatado como a específicidade física da surdez provoca uma relação diferente com a realidade física (o restaurante) e como a realidade física interferiu na realidade social, pois o que seria considerado “romântico” pela maioria das pessoas ouvintes (um jantar à luz de velas) para os surdos é potencialmente uma experiência desagradável. Acredito que o conceito do que vem a ser “romântico” é cultural, e esse exemplo, arrisco dizer, mostra uma diferença no modo de ser surdo em relação ao ouvinte. Um outro exemplo por ela trazido é:

“Tem algumas atitudes acerca da percepção visual entre sujeitos surdos, por exemplo, durante a conversa ficar de frente a frente é uma circunstância muito valorizada pelo povo surdo, não importando a distância, por isso eles evitam virar as costas enquanto estão em interação; se isto ocorre é considerado como insulto, ou desinteresse. Também quando estão conversando distantes um de outro e alguém “corta” neste espaço visual ficando de obstáculo no meio, é considerado uma grave falta de educação para a comunidade surda.” (página42)

O que vemos aqui são regras de conduta social, ou seja, culturais, condicionadas pela especificídade da surdez.

Na página 51, a autora versa sobre o isolamento familiar do qual o surdo é acometido quando integrante de família ouvinte, basicamente o que também nos diz Gladis Delcin em “Um Estranho no Ninho” supracitado. Esse sentimento de não pertencimento ao núcleo familiar, poderia ser considerado traço cultural contrastante? Não sei, deixo aberta a questão.

Mais a frente autora discute um outro “artefato cultural”: a literatura surda. Ao falar sobre piadas, na página 59, diz:

“Estas piadas da cultura surda muitas vezes podem ocorrer sem que a comunidade ouvinte as compreenda e/ou nas as achem engraçadas e vice-versa: o povo surdo também não compreende as piadas da cultura ouvinte. Isto ocorre porque os sujeitos surdos usam nas piadas os artefatos culturais do povo surdo, enquanto para o povo ouvinte, a temática da língua portuguesa e versões sonoras são mais importantes.”.

Acredito que o humor de uma piada é condicionada e faz referência à cultura da qual faz parte.

Seguindo com a leitura nos deparamos, na página 62, com:

“[...] Ser filho de pais surdos é extremamente respeitável no circulo deles, como cita o Wrigley (1996, p.15):

"A partir de uma visão dos Surdos, o ato politizado de alegar uma surdez “nativa” – ou seja, uma surdez de nascença – está ligado à identidade positiva de não estar “contaminado” pelo mundo dos que ouvem e suas limitações epistemológicas do som sequencial. A “pureza” do conhecimento dos Surdos, a verdadeira Surdez, que vem da expulsão desta distração é na cultura dos surdos uma marca de distinção. Seria melhor ainda se os familiares e até mesmo seus pais fossem também Surdos.” "

Entre nós, ouvintes, o fato de sermos filhos de pais ouvintes não causa nenhuma distinção social significativa, embora acredite que aqui acontece algo semelhante a ouvintes e surdos. Um ouvinte se considera normal, e gostaria que seu filho fosse normal, igual a ele, o surdo quer a mesma coisa, para ele o normal é a surdez, e ele também vai querer um filho normal, isto é, igual a ele. De fato, a existência de uma língua em comum no núcleo familiar é de suma importância para a criação de laços afetivos. Com efeito, de que forma poderá uma pessoa saber o que é “amor materno” se ela nem ao menos entende o conceito de mãe? Como poderá ela entender o conceito de mãe, se sua linguagem foi reduzida a gestos caseiros, centrados no aqui e agora, no trivial? Tendo muitas vezes como únicos interlocutores mãe e irmãos? É o que ocorre quando, pelas razões que forem, o surdo não tem acesso à lingua de sinais, ou oralização (largamente criticada porém não podemos descartá-la, em última instância, como forma de acesso à linguagem) o que constitui-se numa deficiência linguística socialmente construída, pois a faculdade da linguagem, o potencial para desenvolver língua estava ali, perfeito, mas o social não propiciou as condições necessárias, a interação . Então é muito natural que um ouvinte fique feliz de ter um filho ouvinte, e um surdo feliz de ter um filho surdo, mas será que os conceitos de perfeito/imperfeito de surdos e ouvintes são diferentes? Em caso positivo, seria devido a uma diferença cultural?

Mais à frente lemos, na página 83, que a música não faz parte da cultura surda (por razões óbvias, diga-se de passagem), a relação de um povo com a música é cultural?

Finalizando, transcrevo da página 31 o seguinte conceito para povo surdo:

“Quando pronunciamos “povo surdo”, estamos nos referindo aos sujeitos surdos que não habitam no mesmo local, mas que estão ligados por uma origem, por um código ético de formação visual, independente do grau de evolução linguistica, tais como a lingua de sinais, a cultura surda, e quaisquer outros laços.”

Resumindo a discussão: existe uma etnia surda? Não. Os surdos se encontram numa situação cultural ímpar? Sim. Existe concomitantemente a uma cultura brasileira, uma cultura surda, estando então os surdos inseridos em duas culturas diferentes? Talvez.

Agradeço por seu tempo, leitor(a), e espero ter atingido meus objetivos nesse texto, os quais:

1) Discutir o conceito de etnicidade, expondo o que me incomodava.

2) Falar sobre o que eu entendo por etnicidade e

3) Discutir a situação do surdo nesse contexto.

Com isso me despeço, abraço, Kainã Aguiar Ferreira

2 comentários:

  1. Texto claro e objetivo.
    Revela a reflexão que você teve.
    Como ouvinte, causou-me estranheza saber de uma [tal] cultura surda. Parando para pensar . . .
    por que não?
    Se podemos ter cultura quilombola e cultura indígena, por que não cultura surda?
    Qual a causa de tanta estranheza?
    Julgo-me superior a eles o suficiente para que não existam? [esta é a pergunta mais sincera]

    ResponderExcluir