terça-feira, 27 de outubro de 2009

Norma culta Brasileira X Norma Padrão, a Tentativa de Um Debate.


Olá, gostaria de saber se a despeito de nossas profundas divergências quanto ao modo como enxergamos a língua portuguesa, poderíamos conversar a respeito dessas idéias, você é realmente uma pessoa muito inteligente, que expõe muito claramente suas idéias. A princípio pensei que o senhor não possuía conhecimento de linguística, pois suas afirmações vão contra tudo em que acreditamos. Crenças estas baseadas em nosso estudos. Mas ao lê-lo pude perceber que você possui sim um notável conhecimento de línguística, e queira me perdoar, um notável desconhecimento também. Ainda sim, não pretendo aqui de forma alguma tentar mudar seu pensamento, e nem o senhor a mim. O que eu mais gostaria é de entender melhor seu pensamento. Um dos temas centrais de sua explanação em "A degradação da língua portuguesa" 2008, pode ser resumida, grosso modo, em: o brasileiro fala mal o português. Não quero entrar nesse (infrutífero) mérito, a questão é que se o brasileiro fala mal é porque erra. É sobre isso que pretendo perguntar. O que é considerado erro pelo senhor? Existiriam, para você, erros "comuns" que de tão comuns entre os brasileiros, mesmo entre os mais cultos e letrados, na verdade não são erros, e sim inovações legítimas, pois por mais que uma normatização seja efetiva a língua não é estática?
O senhor acha que a norma contida nas gramáticas é a norma culta? Mesmo quando escritores consagrados, hoje e ontem não seguiram ou não seguem alguns/vários desses preceitos? Minha questão é: existe uma norma culta típica do português usado pelos brasileiros, ou o nosso referencial gramatical deve ser lusitano? Refiro-me a coisas como a regência do verbo namorar como transitivo direto (regência clássica) ou como transitivo indireto (regência "moderna"), ou então "assistir ao jogo" em contraposição a "assistir o jogo" . Nesses casos, por exemplo, você considera erro, ou o jeito comum do brasileiro, mesmo letrado, utilizar os verbos em questão?. Atento para o fato de que a regência moderna "com" do verbo namorar traduz o matiz semântico de companhia, cooperação. Talvez, ao dizermos "estou namorando com x" estamos significando algo diferente de "estou namorando x". Mas uma parte da gramática tradicional diz que namorar como transitivo indireto é erro, outras dizem que não. O que fazer? Qual é o padrão de correção que, em sua opinião, deve vigorar?
Talvez meu texto tenha ficado um pouco confuso, muita coisa para dizer, sem querer me delongar de mais, aqui fica o meu convite para um debate respeitoso acima de tudo, e, espero eu, muito proveitoso.
Com isso me despeço, Kainã.


Carta de resposta ao artigo "A degradação da língua portuguesa" 2004, escrito por Arthur Virmond de Lacerda Neto, disponível no endereço eletrônico: http://arthurdelacerda.spaces.live.com/?_c11_BlogPart_pagedir=Next&_c11_BlogPart_handle=cns!754449FAEB345E0A!229&_c11_BlogPart_BlogPart=blogview&_c=BlogPart, o qual reproduzo abaixo:


                                                              A degradação da língua portuguesa

                                                                               2004


            É fato observável diariamente que a forma falada do português no Brasil vem sofrendo um declínio crescente em sua qualidade. A um vocabulário dramaticamente pobre, somam-se a perda dos plurais, da preposição “de”, da terminação “mente” nos advérbios de modo, a ausência de concordância de gênero e  modo, o desuso dos acentos e dos sinais gráficos, notadamente as vírgulas, a proliferação dos modismos e das gírias, a incapacidade, mesmo de estudantes universitários, de redigirem corretamente, a introdução da sintaxe do idioma inglês (como a predominância  equivocada do advérbio “para” e o gerúndio após o infinitivo).
                        Nada disto se verifica em Portugal, cujo linguajar apresenta diferenças vocabulares, de que o viajante brasileiro facilmente se apercebe e exagera com freqüência, a exemplo de “peão” por “pedestre”, “bica” por “cafezinho”, “guarda-redes” por “goleiro”.
                        Brasileirismos de um lado, lusitanismos de outro, a existência de  uns e de outros indica apenas a de termos que se desenvolveram em lugares geográficos específicos, no âmbito do idioma comum aos dois países. Cuidam-se de localismos incapazes de caracterizar uma língua “brasileira”, em contraste com o “português de Portugal”, da mesma forma como os do Rio Grande do Sul ou da Bahia não autorizam cogitar-se de um idioma gaúcho nem de um baiano.
                        Idiomas distintos são, por exemplo, o português face ao russo e este perante o chinês,  jamais o português empregado entre nós defronte ao vigente em Portugal: qualquer brasileiro percebe José Saramago e qualquer português entende as telenovelas brasileiras.
                        Lá e cá, o idioma consiste precisamente no mesmo, com  distinções suaves de vocabulário e de sintaxe, e mais agudas de pronúncia, que encarnam meras variantes do uso de uma só língua.
             Entre estas variações há, porém, uma diferença radical, na verdade a única: a qualidade com que se emprega o idioma aquém e além-mar. Enquanto o português médio, inclusivamente as crianças, sabe a língua e empenha-se por empregá-la corretamente, no Brasil passa-se de regra o inverso:  não correspondendo entre nós o idioma a um valor cultural, prevalecem face a ele o descaso e o desleixo, e impera a lei do menor esforço.
            Não se diga que nisto  exatamente radica a nossa peculiaridade idiomática:  as gírias, os modismos, os estrangeirismos,  a tolerância dos mais crassos erros, a negligência gramatical, representam formas de um povo  inferiorizar-se face a si próprio e perante o estrangeiro, e não de adquirir qualidades com que afirme o seu valor.
            Inferiorizamo-nos face a nós próprios, porquanto  em décadas anteriores falou-se no Brasil com uma qualidade da qual decaímos; perante o estrangeiro, pois, cotejado o desempenho lingüístico do brasileiro  médio com o do  português em geral, o resultado evidentemente desfavorece-nos.
            Que  nos falta  aos brasileiros em matéria de idioma? As convicções de  encarnar ele um bem cultural pelo qual é preciso zelar, a de que sabê-lo a sério representa uma forma de qualificação pessoal e a de que utilizá-lo competentemente é  útil e vantajoso para ser-se entendido com exatidão.
            Tal quadro agrava-se com a distinção especiosa entre as formas oral e escrita da língua, em que alegadamente  deveria a segunda reger-se gramaticalmente, à primeira consentindo-se todas as liberdades. Representariam, a primeira, a modalidade coloquial do idioma;  a segunda, a culta.
            Ora, a maioria esmagadora das comunicações entre as pessoas desenvolvendo-se oralmente e não por escrito, deve-se antes saber-se falar corretamente, do que escrever-se literariamente. Há um verdadeiro contra-senso em considerar-se aceitável a desqualificação na forma por excelência de comunicação, aquela que as pessoas, sem exceção, praticam dia após dia ao longo de toda a sua vida, reputando-se, por outro lado, necessário o domínio gramatical do idioma somente ao empregamo-lo por escrito, caracterísica de algumas profissões apenas, como a advocacia, em que a inépcia lingüística evidencia-se nas gerações mais novas. Também nas mensagens eletrônicas, tão difundidas, multiplicam-se os erros, revelando a incapacidade do brasileiro médio de redigir algumas linhas com um mínimo de correção, como  seria de esperar em pessoas alfabetizadas.
            A associação entre forma oral e incorreção, por um lado, e entre forma escrita e correção por outro, é meramente descritiva, e não prescritiva. Ela descreve a realidade como a observamos no Brasil e não como ela poderia ou deveria apresentar-se. De constatarmos um certo estado de coisas, não se segue que nele se encontre o ideal, o desejável ou  o melhor.
             Ora, a falácia daqueles binômios consiste em admitir-se como prescritivo o que é apenas descritivo, em reputar-se que o que é, deve ser,  atribuindo-se uma relação de inerência entre a oralidade e a má qualidade, como se por definição todo idioma fosse necessariamente mau falado,  quando o desempenho dos europeus em geral, dos argentinos, dos chilenos (e  de outros povos certamente) demonstra exatamente o inverso disto.
            Definir o falar como mau falar equivale a coonestar a ignorância e de conseqüência mantê-la, sob a ilusão de que o estado normal da atuação idiomática de um povo é aquele em que ela se nivela por baixo, em que a ignorância assume a condição de  fatalidade ou de naturalidade ao invés de consistir em um mal a combater.
            De alguns anos a esta parte despontou, é fato, um certo interesse pelo aprendizado da norma culta do idioma, origem de  programas televisivos, livros e artigos em diários, voltados ao seu ensino. Reconheceu o brasileiro a sua insuficiência no bem falar e no bem redigir, que procura sanar, embora fosse preferível que não tivessemos chegado a esta  situação, cuja origem encontra-se: 1º) na ausência do hábito da leitura, ou seja, na inexistência de contato  permanente com a utilização melhor do idioma, com aquela que destina-se naturalmente a servir de exemplo, 2º) no surgimento de uma mentalidade favorável à mediocrização do uso da língua, resultante         2º-a) da distinção equivocada, já referida, entre as formas oral   e  escrita  do uso idomático,  adotada pelos professores de português nas escolas, que assim        2º-b) desencorajam a juventude a  aplicar o que estuda e a induz a enxergar no conhecimento do idioma algo vazio de sentido e de conseqüência inútil, o que por sua vez     2º-c) conduz fatalmente à ignorância do idioma, ignorância que passa a entender-se como normal e portanto aceitável.
             Tal realidade agrava-se com a convicção ideológica de que  toda regra lingüística representa uma forma de dominação de certas classes sobre outras e que portanto desprezá-la permite ao dominado subtrair-se a esta mesma dominação, quando na verdade,  a ser verdadeira a premissa, ocorre precisamente o inverso: quanto menos capazes idiomaticamente, mais dominados serão os que já o são, pois tanto menos compreenderão os textos regidos pelas regras que desdenham. Assim   converter-se-ão os dominados em dominados ignorantes e portanto, mais facilmente domináveis.
            Ao desconhecimento das formas gramaticais é inversamente proporcional a compreensão dos livros em geral, fonte por excelência da cultura, a resultar em que: 1º) sofrendo dificuldades de entendimento, o leitor afasta-se da leitura e, já fracamente letrado, torna-se culturalmente limitado, 2º)  para obterem leitores, alguns autores passam a rebaixar-se ao nível deles, submetendo-se à ignorância em lugar de contribuir para com a sua erradicação, 3º) certa literatura  aproxima-se da fala coloquial ou mesmo a imita, para ser entendida e assegurar-se público leitor, bem assim porque certos escritores dispensam-se de um preparo mais rigoroso, pelo que  4º) a produção literária originada sob tais condições será compreendida  restritamente por quantos comunguem da variante  adotada pelo autor, o que por sua vez 5º) limita o âmbito de leitores ao qual ela vocaciona-se, tornando-a meramente circunstancial ao invés de universalizável.
            Certa corrente  no Brasil, ao enaltecer o coloquial, tacha de preconceituosos o purismo idiomático e o padrão culto da língua. Há preconceito, de fato, no  entronizarem-se como aceitáveis todas as distorções, desde que de origem popular, entenda-se, desde que originárias dos que sabem menos o idioma, nivelando-o por baixo ao excluir o melhor pelo pior.
            Daí: 1º) a substituição da noção de certo e de errado pela de que tudo é certo se proveniente da massa inculta,  2º) a constituição, implicitamente ao menos, de um “direito” à ignorância,  3º) a perda de um referencial comum (gramatical), em que todos os usuários do idioma compreendam-se,  4º) a formação de guetos idiomáticos correspondentes às variações específicas, no tempo e no espaço, ao uso vulgar do idioma.
            Na raiz desta doutrina e da sua ampla obra de inversão axiológica e de aniquilamento da língua portuguesa, encontra-se a ideologia marxista, por inerência voltada ao popular e antipática às formas superiores da cultura, que reputa  expressões dos valores da burguesia e da sua dominação social. “Durante cinqüenta anos a intelectualidade progressista martelou nos nossos ouvidos as seguintes máximas: (a) toda norma lingüística oficial é odioso instrumento de dominação política e de exclusão social; (b) os gramáticos e dicionaristas devem, portanto, limitar-se a registrar os usos lingüísticos da maioria, dizendo amén a todas as mudanças sensatas ou insensatas.
            Hoje essa doutrina é ensinada em todas as escolas brasileiras, e quem quer que ouse contrariá-la se vê esmagado sob o peso de dois argumentos cientificamente irrefutáveis: (a) você é um reacionário; (b) cale a boca”.(CARVALHO, Olavo de, O imbecil coletivo II, Topbooks, 1998).
            Expressão modelar de tal corrente encontra-se no opúsculo “Preconceito lingüístico”, de Marcos Bagno, que profliguei em “Bourdieu e “Preconceito lingüístico”: duas refutações”. Pedidos para o autor: arthurlacerda@onda.com.br .

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